29-02-16
Das Neves de Roncesvalhes à Ponte sobre o Rio Oja
Os dias, nas minhas viagens, especialmente se vou sozinho, começam sempre cedo. Normalmente com os primeiros raios do sol!
Mas numa viagem de inverno, muitas vezes abro a janela e ainda é de noite. Nesta não foi excepção!
Levantar, tomar banho quente, vestir o fato térmico, arrumar o saco impermeável e vestir o meu velhinho fato de turismo leva bem mais de uma hora!
Enquanto monto tudo na Artax, o seu motor aquece. Depois, quando tudo já esta preparado, ataco o pequeno almoço composto por café com leite, sumo de laranja, “croissants e pain au chocolat” recem feitos (ainda quentinhos) que me preparou a amável senhora da casa de hospedes donde passei a noite!
Em Saint Jean Pied de Port unem-se todos os caminhos europeus, o da Bretanha, o de Paris, o de Genebra e aquele que vem de Roma e percorre grande parte da Via Domitia. Esta é a porta de Saint Jaques e aqui começa o chamado Caminho Francês.
A vila esta muito bem conservada, com muitos edifícios datados da época medieval, onde o pórtico Gótico da Igreja Matriz é um bom exemplo (a foto que fiz ficou tremida).
Por aqui se passa para apanhar a direcção Espanha.
Devo ser justo e devo reconhecer que, por motivos que não tarda vão perceber, não pude aventurar-me no caminho logo de inicio, pois a partir deste ponto começa-se a subir até atingir os 1400m por uma senda que esta intransitável todo o inverno.
Em alternativa, temos a N135 que vai por Valcarlos até Roncesvalles já em território Navarro.
Ao principio até que parecia suave essa coisa de frente fria e massas de ar gelado vindas da Siberia….
Mas depois percebi que não era bem assim!
Fazia frio, nevava, vento e nevoeiro, tudo ao mesmo tempo….
Uma estrada de montanha neste estado, como podem ver.
Há dois anos atrás estava-se bem melhor.
Roncesvalles encontrava-se 200m mais há frente. Chegados lá, constato que a cada metro percorrido o tempo se complicava. Não eram trapos os que estavam a cair, mas sim lençóis. E ao mesmo tempo, por incrível que pareça, estava a chover uma espécie de granizo.
Tudo aconselhava para dar começo ao ritual da dança do fato de chuva…
Sim, porque vestir um fato de uma só peça, depois de ter já vestidos 3 capas de roupa, protecções incluídas, calçado com luvas de inverno já molhadas, transformava-se num jogo de contorções corpóreas pouco sensuais e dignas de um video comico-tragico!
Para culminar tudo isto, com suores frios incluídos, era por habito surgir a necessidade fisiológica de “mudar a agua às azeitonas” depois de tal ritual.
Esta vez não foi excepção, o que me obrigou a, enquanto continha a vontade da bexiga noutro jogo de contorcionismo (desta vez bem mais familiar ao olhar humano), retirar o fato de chuva, tirar as luvas desapertar os punhos do casaco, desapertar o fecho e os trinta velcros do casaco, o cinto das calças, os botões das mesmas e por fim, libertar a “mangueira” para o seu trabalho de evacuação desesperado.
Nisto aparecem-me no horizonte dois peregrinos!
Podia ser pior, mas agora que já estou a “trabalhar” para a fertilidade do solo, quem quiser que olhe para as nuvens!
Como se fosse pouco, o pior era voltar a repetir tudo de novo, ritual incluído, com os peregrinos ao longe a verem-me a dar voltas como um pião sem inercia e moribundo há procura da segunda manga do fato de chuva….
Uma vez de volta ao caminho, constatei que os mais de 60cm de neve que tapavam o caminho me obrigava a continuar, asfalto adiante, até poder circular pelo caminho!
Assim que pude, não hesitei!
Inicialmente o caminho apresentava partes geladas e alguma neve, mas nada comparado com o mais de meio metro dos km antecedentes.
Nisto do todo-terreno apliquei sempre uma velha máxima, que foi o de pisar terreno firme. A agua e a lama não são bons terrenos, mas sabemos que donde há impermeabilidade existe sempre uma base mais ou menos solida que a sustenta. Já a neve não, uma vez que é “flutuante” e nada nos indica que debaixo de 30, 40 ou 50cm de neve existe um piso firme. Depois, porque o efeito deslizante já é o suficiente convincente para não nos metermos em mais complicações…
O caminho Navarro é húmido, estreito, acidentado, com algumas partes de escadarias não muito íngremes, mas requer algum cuidado, porque existem pedras salientes, árvores e até mesmo ravinas….
Aqui encontramos uma arranca de um pinheiro que caiu sobre o caminho, muito provavelmente vitima de uma árvore que tombou com o efeito do vento…
Ponte medieval de Zubiri, onde antes de fazer esta fotografia abordei um habitante do povo:
-Então? O que é que passa em Navarra? Tendes os tubos todos rotos?
-Hombre!- sorriu- Já andamos nisto há três dias! Choveu e nevou mais nesta ultima semana que em todo o inverno. E parece que não vai ficar por aqui….
Para isto queria eu o Caminho, para meter-me com as gentes que humildemente respondem com muito bom humor a tudo o que se lhes pergunta.
Aqui esta uma das partes mais interessantes da parte Navarra do Caminho. Fazemos vários km apoiados num socalco em pleno leito do rio que corre com pressa a escassos centímetros de nós.
Mais há frente deste local o rio tratou de reclamar meio metro ao caminho, o que me obrigou a por a roda dianteira junto há parede e num golpe de gás transpor o obstáculo. Correu bem e não houve nada que lamentar, mas se a roda dianteira se inclinasse para dentro do leito, este menino e Artax tínhamos tomado uma banho de agua fria!
Mais uns km à frente e já podíamos avistar Pamplona.
A Plaza del Consistorio, donde a cada 7 de Julho de dá o “Chopinazo”, dando começo às festas de San Fermin e aos “encierros” a cada manhã da semana de festas.
Curiosamente estas festas, sobejamente famosas, ganharam a sua fama através de um escritor que “caiu em Pamplona por acaso”, precisamente nas vesperas das festas da Cidade. É por isso que muito perto desta “plaza” podemos encontrar uma monumento dedicado a Ernest Hemingway, que tomou como fonte de inspiração estas festas, e no ambiente taurino existente em Pamplona, para escrever vários dos seus romances.
Quando entrei na cidade tive que abandonar o Caminho e procurei a melhor forma de chegar à “Plaza del Concistorio” mas, em determinada altura, tive que baixar de Artax e empurra-la até lá! Só depois é que percebi que as ruas não estão fechadas ao trafico, estão apenas limitadas a 10km/h e existe um entramado labiríntico de sentidos únicos ao qual devemos respeitar. Não foi fácil sair dali de volta ao caminho.
A chuva não nos tinha abandonado, de tanto empurrar a Artax já me sentia todo suado, até que parei junto de uma patrulha da policia municipal e perguntei pela melhor orientação:
-Apanhe a primeira à esquerda e é sempre em frente!- disse a guarda com um sorriso na cara.
Não posso acreditar, depois de mais de 20min, sem ver a saída deste labirinto, vou fazer figura de parvo ao perguntar uma coisa que estava diante dos meus olhos!?
Saindo de Pamplona, apanhei o estreito caminho que me levaria a outro ponto alto do Caminho. O Monte do Perdão!
Esta imagem permite ver, bem lá no fundo a cidade de Pamplona, de onde sai o Caminho que pisamos até chegar aqui….
O Monte do Perdão, que tem no seu cimo esta escultura, que retrata os peregrinos e as diferentes formas de peregrinar. Artax quis incluir-se na escultura….
A vertente de Pamplona é uma subida paulatina ao longo de mais de uma vintena de quilómetros, apenas coma dificuldade de um vento lateral que, aliado ao piso molhado, obrigava a trabalhos cautelares.
A vertente oposta é íngreme, erosionada pelas aguas que arrastam os sedimentos deixando as pedras soltas. Pedras estas, erosionadas pelo tempo, de forma esférica, que reagem com o peso e ao passo falso… Aquelas que estão agarradas ao solo formam degraus naturais, de altura e uniformidade dispares, e, a ajudar tudo isto, estava tudo ensopado em agua…..
Artax mostrou porque é muito melhor que Dulcinea, mais equilibrada, a sua jante 21” ajuda muito na transposição dos obstáculos, o seu motor tem chicha até no relenti, tracciona muito suavemente a cada resposta do acelerador e o facto de ter 250cc aumenta muito o efeito travão/motor.
Quando terminei a descida, sem sustos ou momentos críticos, lembrei-me do episódio de 2014 e de outra coisa importante….
A partir daqui não conhecia o Caminho.
Mas, até Arcos, o Caminho seria largo e plano, para alem de que no horizonte o ceu parecia não estar tão cinzento!
Deu para avivar o passo, viver alguma emoções Dakarianas, como saltos ou passagens rápidas por charcos, tudo isso com muita diversão há mistura.
Puente la Reina e a sua ponte medieval….
Apesar das nuvens já não chovia, tinha mais de 100km de caminho feito e o estômago avisava-me que já passavam das 2 da tarde….
Olhava para os meus pés e via os pes daquele gajo dos 4 magníficos que era duro como uma rocha, para alem de tão feio como elas. Não podia entrar assim num estabelecimento e deixar aquilo pior que uma pocilga.
Num dos povos que cruzei encontrei uma padaria/pastelaria, café, bar, restaurante, supermercado e mais alguma coisa que não me lembro:
-Senhora pedia-lhe um favor, se for gentil! Tenho os pes todos enlameados, não comi nada em todo o dia, dá pena de entrar porque lhe vou sujar a casa toda. Pode trazer-me dois Croissants mistos e um café com leite grande aqui fora? Juro que lhe pago!
A mulher não hesitou e trouxe-me tudo o que lhe pedi enquanto eu verificava a Artax. No final, já saciado o estômago, paguei à senhora que com simpatia me serviu.
Pelo Caminho cruzamos algumas povoações, de dimensões diferentes, muitas delas atravessadas literalmente pelo Caminho, por donde as pessoas passam todos os dias, e as vezes mais que uma vez, no cumprimento das suas tarefas diárias:
-Senhor!- disse ao parar a Artax- Como é que se sente isto de fazer o caminho todos os dias!?
-Olha! É estranho…. Deviam dar-me uma Compostela, porque tenho quase 70 anos e posso dizer que andei quase toda a minha vida no Caminho!
Não me podia dar melhor resposta!
Estella!
E o sol que brilha!
Finalmente!
O Caminho. Ao fundo os picos nevados de Alava!
Pouco antes de chegar a Logroño o caminho mostra algumas dificuldades. Mais estreito e empinado, provoca duas quedas, curiosamente na transposição de obstáculos simples, mas sem consequências de importância.
Quando avistamos o Ebro, ficamos contentes por atingir a meta de hoje e termos margem para irmos mais alem…
Aqui esta o Ebro que passa por entre os arcos de uma ponte cujas fundações, segundo reza a lenda foi o próprio Santo Domingo de la Calzada que construiu.
Demos uma voltinha por Logroño….
A sua Catedral e a Caller Laurel são os expoentes máximos, a par com a Vinha e o Rio Ebro.
Por falar em Vinha….
Um bom Rioja deve-se a isto. Invernos húmidos e gelados, terrenos fortes e umas mãos que sabem bem o que fazem!
Esta parte do Caminho foi bem divertida, sem grandes dificuldades e obstáculos para superar, acelerar na Artax.
Apesar do tempo frio e pouco convidativo, haviam peregrinos no Caminho, a maioria a pé que faziam as suas paragens para descansar, fazer fotos ou contemplar a paisagem. Sempre que via um peregrino, abrandava, afastava-me de ele o mais possivel para garantir que não havia qualquer risco de atropelo. Depois cumprimentava com um “Buen Camino” e afastava-me prudentemente. Só quando via que já não havia risco, voltava a acelerar!
Este era o protocolo de segurança/respeito que seguia com todos os peregrinos, fosse onde fosse, eles tinham sempre prioridade. Não era eu o peregrino, mas sim eles.
O Caminho tem inúmeras marcas dos tempos, pelouros como este, crucifixos, sinais que marcam a morte de algum peregrino, igrejas, catedrais, conventos, albergues mais ou menos modernos, etc, etc, etc.
Avistar Santo Domingo de la Calzada remete-me há historia do Galo de Barcelos, mas desta feita, documentada e estudada pela Igreja Católica.
Conta-se que na Idade Media, sec XIV um peregrino chegou a Santo Domingo e hospedou-se no albergue para pernoitar. A rapariga que lhe serviu o humilde jantar achou-o interessante e insinuou-se. O peregrino, focado na peregrinação e cansado, não deu trola há rapariga e foi dormir.
No dia seguinte, quando este se preparava para retomar o Caminho foi abordado pelos guardas reais que o acusavam de roubar peças de prata do albergue onde tinha pernoitado. Depois da revista, foram encontradas dentro da sua mochila as peças substraidas, foi formalmente acusado de roubo perante um juiz, correndo o risco de ser enforcado! Num julgamento sem garantias, com uma pressão popular iminente, o juiz condena-o a ser enforcado em praça publica na mesma tarde. O pobre peregrino sempre reclamou inocência mas também não conseguia explicar terem achado os objectos na sua mochila.
Já com a corda ao pescoço, numa praça donde se juntava tudo, o amontoado de gente que assistia a execução da sentença, o trafico normal de carroças e gado em rebanho e o mercado do dia, onde os comerciantes vendiam de tudo o que lhes dava a terra.
-Usa a tua fé e reclama a tua inocência!- ouvia o peregrino sem poder perceber de donde vinha essa voz. Nisto aproxima-se o Abad e dirigindo-lhe a palabra:
-Filho de Deus, redime-te dos teus pecados, diz-nos, foste tu que cometeste tamanho roubo?
-Estou inocente sua irreverencia, tão verdade como aqueles dois galos assados que passam nas bandejas, que serão o almoço de sua senhoria, levantarem-se e começarem a cantar!- tais palavras provocaram as gargalhadas generalizadas dos assistentes. Mas estas foram abruptamente caladas com o cantar dos dois animais, decapitados, depenados e assados, que se mexiam tal qual como se estivessem vivos e assim puderam salvar a vida ao peregrino.
Este foi, segundo diz a voz popular, mais um milagre de Santo Domingo, fundador da cidade, do Hospital de Peregrinos, e que lançou as fundações de muitas pontes com esta, sobre o Rio Oja, de onde deriva o nome da comunidade autónoma em que nos encontramos- Ri-Oja= Rioja.
O restante do dia foi gasto em preparar o dia seguinte, lubrificar a corrente da Artax, abastecer e vigiar na procura de algum possível problema mecânico.
Jantar e dormir foram as melhores escolhas do serão!